domingo, 25 de maio de 2008

Roberto Freire se foi!

Por Dal Marcondes

Ontem à noite, pelo jornal da TV, recebi a notícia de que Roberto Freire, o terapeuta, o jornalista, o escritor, o homem que acreditou que “sem tesão não há solução”, morreu. Eu não via o Roberto pessoalmente há muitos anos, mas me confortava saber que ele estava bem, vivendo e amando. Sem dúvida o “Bigode”, como seus amigos e pacientes o chamavam, foi um dos homens de seu tempo que mais amou e teve tesão por tudo o que fez.

Conheci Roberto Freire em algum momento da primeira metade dos anos 70. Ele já era um mito, com passagens pelo que de melhor o jornalismo brasileiro já havia produzido, e atendia como psiquiatra e psicoterapeuta em um sobrado na rua Sarutaiá, perto da Brigadeiro e da Pamplona, área nobre da burguesia paulistana. Na época eu tinha, acho, uns 16 anos e uma cabeça bem complicada. Queria ser poeta. Em uma de nossas primeiras conversas ele, sentado em uma grande almofada escura recheada com bolinhas de isopor, vestindo um quimono, pegou um exemplar do Estadão de domingo e disse: “Sem problemas. Ache ai uma oferta de emprego para poeta e te dou alta.” Eu acho que não entendi direito na hora. Fiquei com a impressão de que ele queria me desestimular de ser poeta. Mas hoje acho que não. Ele só queria me mostrar que vida de poeta não é fácil.

Bom, de qualquer maneira não me tornei poeta. Não no sentido mais clássico do termo. Cometi algumas poesias, escrevi crônicas e me tornei jornalista. Fiquei cerca de cinco anos fazendo terapia com o Bigode. Primeiro individual e, depois, grupo. Da rua Sarutaiá se consultório foi para algum lugar perto da Lapa e, finalmente, para a rua Lopes Chaves, na Barra Funda, na mesma casa onde viveu Mário de Andrade. Foi um tempo de muitas descobertas, para dentro e para fora. Foi um tempo de libertação. Mesmo sendo filho de uma libertária, creio que a experiência de compartilhar meus pensamentos com o Roberto Freire foi estruturante em minha visão de mundo, em minha compreensão de direitos, de vontades e, principalmente, da minha sexualidade.

Participar da sessões de grupo era como ser personagem de seus livros, era pensar e ser Cléo ou Daniel. Era mergulhar nas águas da Maromba e conhecer realidades múltiplas. Roberto era um ser sensorial, capaz de amar e viver em mundos muito diferentes do comum dos mortais. Mesmo assim tinha, como poucos, a compreensão da natureza humana. Não estive com ele nestes últimos anos, apenas acompanhei a figura pública, aquela que aparecia na mídia. Mesmo assim, em poucas linhas. As fotos que vi mostravam um homem vivido, que perdeu uma vista, mas que mantinha, em seu olho bom, a chama da vida.

Até posso imaginar as preocupações que iam à mente daquele homem. Mas não ouso imaginar que sou capaz de traduzi-las. A presença de Roberto em minha vida foi como arrancar um garotinho suburbano de sua casinha de bairro e lança-lo em um mundo onde o pensamento é poderoso e a língua um instrumento de vida e morte. Não apenas Roberto Freire era um furacão dentro de mentes jovens, mas sua terapia mostrava onde os limites eram inaceitáveis e onde o corpo e a mente precisavam caminhar juntos em um precário equilíbrio.

Nos próximos dias certamente farão homenagens a Roberto, aos seu livros, à uma obra dedicada a mostrar as pessoas para elas mesmas, nuas e jogadas em uma roda viva de paixões. Suas personagens vão sair da obscuridade e viver novamente suas vidas de papel e suas sagas de sangue e amor. Cléo e Daniel retomarão sua grandeza e mais uma vez se amarão pelas pedras da Maromba. No fundo da alma das pessoas que percorreram com Roberto Freire os corredores de suas próprias existências e abriram seus mais profundos alçapões, a simples menção de seu nome, de sua morte, de sua finitude, vai acordar o desconforto de ser conformado.

A alma dele vai alvoroçar, desta vez, os anjos e, talvez, mostre a eles qual é, finalmente, seu sexo.

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