domingo, 18 de maio de 2008

Contribuição de Fernando Rios


Esta é uma contribuição de meu bom amigo Fernando Rios, o poeta das letras, da vida e da comida. Fernando mostra a cada minuto, com seu sorriso franco e otimismo desmedido, que viver não é o simples intervalo entre o nascer e o morrer. É construir sonhos e semear amizades. Nada mais justo que neste blog, onde escrevo e publico o que quero, e não o que outros querem ou precisam ler, tenha esta e muitas outras contribuições de Fernando Rios.

Na foto, Fernando, do óculos, está com Otávio Machado, um grande batalhador que insiste em mostrar que as soluções sempre existem, algumas são inusitadas, e dificilmente são sempre as mesmas.

Ouça "Nous sommes les nouveaux partisans" (formato MP3), canção-hino, utilizada pelos participantes do Maio de 1968, em Paris. Consiste numa derivação do tema da Resistência e dos resistentes durante a II Guerra Mundial.

MAIO DE 68: DO LIVRO DAS HORAS AO LIVRO DE PONTO
Alcir Pécora

A marcação temporal em “maio de 68” é enganosa. É certo que houve um mês de maio no ano de 1968, mas não é dele que se fala quando se fala dele: a dimensão simbólica da data é muito maior do que a sua dimensão histórica.“Maio de 68” é uma metáfora, como “Paris” é uma metáfora (dizia Cortázar) ao situar-se junto à data, que a tudo contamina de símbolo. Como se dá na Bíblia, quando os eventos históricos da vida de Cristo são também alegoria de todos os eventos da história do homem, do gênese ao apocalipse. De resto, é sabido o que “maio de 68” alegoriza: juventude, liberdade, comunidade, igualdade, utopia, revolução, direitos de minorias, paz e amor livre: um continuado êxtase. Por isso mesmo, está claro que também alegoriza, por negação, a ausência de contradição na vida real, pois, nesta, liberdade não rima com igualdade, como alertou Isaiah Berlin; revolução e utopia acabam por ser mutuamente excludentes, como demonstraram os regimes revolucionários efetivamente implantados. Ao alegorizar o fim da existência agônica, “maio de 68” é também alegoria de um milagre. Tudo se concilia numa grande prece para que nada contradiga o desejo mais coletivo e o mais pessoal. Como disse Boris Groys: “É absolutamente evidente que os anos sessenta foram um presente divino. O ano de sessenta e oito foi um afluxo súbito de energia. Por todo o mundo – em Moscou, em Praga, na América, na China, em Paris, (...) na Alemanha --, muitas pessoas começaram a reivindicar: queremos fazer qualquer coisa sem ter de fazê-lo. Queremos transformar os prazeres em trabalho e o trabalho em prazer. (...) É isso o que disseram, o que sentiram, e saíram em manifestação para exigi-lo – e afinal para exigi-lo de Deus, porque nenhum governo deste mundo pode dar qualquer coisa desse gênero. Era, por assim dizer, uma reivindicação dirigida ao céu”.

E então, nessa prece, que versículo toca à literatura? Quando rezamos pelo milagre do fazer tudo sem o trabalho de fazer nada, a obra perfeita sem a mão que a efetue, a potência do pensamento que não se reduz com o ato de pensar, estamos imaginando que a vida deva ser pautada pela literatura, ou, por extensão, pela arte. Pensamos nosso corpo como escritura e nossa vida como obra de arte.

Mas, se “maio de 68” pode ser entendido simbolicamente como submissão da vida à arte, que anula as contradições do real no gozo, a segunda coisa a dizer é que tal literatura é estranha à literatura. Pois a questão decisiva da literatura não é liberar ou curar mas, ao contrário, articular um nexo com o legado cultural, produzir um ato de inteligência capaz de estabelecer correspondência com o passado, em busca de alguma forma de transcendência. Nesse ato, a menos que a obra se esgote em seu consumo, o presente ocupa apenas parte dele.

E a “literatura hoje”, o que pode ser? Para que a comparação se efetue é preciso encontrar seu núcleo simbólico igualmente. Está claro que a literatura já não pensa em pautar a vida: do milagre não resta sequer memória (a não ser talvez instrumental). Já não tem pretensão de ser vetor da vida pessoal ou coletiva. Quer apenas pautar-se pela vida, num modesto realismo. Quer estar na vida como tudo que está nela: como um ofício a mais, como um trabalho sério e miúdo de operário, em que o melhor sonho é ser “autor de tal empresa”. A multidão de blogueiros, no fundo, trocaria de bom grado sua liberdade no cyberspace por um contrato numa editora tradicional. Assim, a dimensão simbólica da “literatura hoje” veste colarinho puído: orgulha-se de fazer bem feito o servicinho do dia-a-dia, bagrinho da estiva dos negócios. Também por isso, por ter sede na vida ordinária, “literatura hoje” está fora da literatura pra valer. Pois esta não pode estar no esforço de vestir a camisa da empresa, mas no de dialogar com a vida intelectual, cujo horizonte constitui, afinal de contas, um campo de problemas sem solução, não a oportunidade ou o êxito no mercado.

Isto posto, os “40 anos depois” significam basicamente que saltamos do Livro de Horas para o Livro de Ponto, pulando a literatura. De lá para cá, ela sempre esteve fora do jogo principal. Em “maio de 68”, o escritor era inútil porque todos tinham obrigação de sê-lo, uma vez que a função da vida era ser obra de arte. Agora tampouco vale grande coisa, porque, conquanto trabalhador especializado, como todos os outros, o escritor é um caso de RH, aspirante a funcionário. Em “maio de 68” partilhamos o milagre; “hoje” a banalidade. A literatura passa ao largo de ambas as metáforas. Apenas cuida de ouvir as vozes literais, presença viva, dos mortos.

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