sábado, 22 de março de 2008

Reflexos de alguns momentos

Dal Marcondes

Todas as vezes que nos defrontamos com nossa própria finitude ficamos perplexos com os limites que ns são impostos. Pertencemos a uma geração da Humanidade, e a uma classe social que não está acostumada a enfrentar limites definitivos. Tratamos estas impossibilidades como transitórias e buscamos sempre o chavão fácil da superação.

Bom, ainda não existe superação para o fim da vida. A extinção do ser, do sentir, do poder e do fazer. A impecável imobilidade social, moral e biológica do ser. O último ato.

Os momentos em que vislumbramos a possibilidade do fim. Estes são fundamentais.

Saber da iminência de deixar a cena cria a vontade de fazer mais, ser melhor, estar bem. Uma vontade que, em si, não tem a capacidade de alterar resultados naquele preciso momento. No entanto, mostra caminhos e alternativas para o porvir, se ele existir.

Triste é a vida de quem não se apercebe de que ela se esvai. Porque os momentos são iguais, uma sucessão de sentimentos e sensações sem a elevação do último acorde. Mais triste ainda é a vida de quem tem medo do cerrar das cortinas. Pois, sem domínio da própria existência, vive a luta para preservar a iníqua sucessão dos dias e noites.

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terça-feira, 11 de março de 2008

A fala do amigo

Dal Marcondes

Um bom amigo, o Avelino Alves, me escreveu falando sobre a necessidade que ler coisas simples pela manhã. É verdade, se começamos o dia com as manchetes dos grandes jornais, com as dezenas de explosões, com as políticas e as restrições. Com os conflitos e as secas, como vamos produzir coisas importantes, cheias de ternura e comprometidas com o futuro, com as novas gerações e com nossos netos? Também esta manhã estava conversando com outro amigo cujo filhote de 3 anos passou a noite com febre e desinteria. Ele certamente não quer saber hoje das guerras e dos parlapatões que dominam a política.

Talvez os dois quisessem apenas ler sobre amanhã de sol onde seus filhos e netos poderiam ir à praça. Brincar de bola e ouvir o som de passarinhos. Pular corda, escorregar e correr. Nos jornais a manchete seria: “Mais ruas serão fechadas apenas para pedestres, ciclistas e crianças”.

É verdade, não temos mais Rubens Braga e Drumond. Pelo contrário, temos nas redações gente que insiste em nos esfregar na cara, manhã após manhã, a nossa incapacidade, nossa incompetência, nossa deslavada derrota frente à vida. Como quem precisa que todos sejam terrivelmente massacrados para que possa sentir-se de alguma forma satisfeito.

Dias atrás abri uma revista que trazia na capa o seguinte título: “Automóveis: o melhor ano da história”. A matéria dizia que “nunca na história deste país” a indústria automobilística vendeu tanto. Tudo isso em um tom de jubilo pelo sucesso do modelo de desenvolvimento que entope nossas ruas e avenidas. Num primeiro momento pensei como Cristo: “eles não sabem o que fazem”. Mas, para minha surpresa, na mesma revista havia uma outra matéria que dizia mais ou menos isso: “Com seis milhões de automóveis São Paulo pode parar”. Ou seja, alguém lá dentro da redação sabia que o modelo é insustentável.

Os leitores são massacrados diariamente com centenas de informações sobre coisas para as quais sentem-se impotentes em atuar. Mas não são estimulados a fazer as coisas simples, como ir à praça e resgatar valores que devem fazer parte de nossa herança para o futuro.

Assim como meus amigo, quero também ler sobre coisas simples, que eu possa fazer com meus filho e netos, que possam ajudar a construir uma ética para o futuro. Vou continuar me indignando com os grandes temas eleitos nas reuniões de pauta e fechamento dos grandes jornais. Afinal, jornais servem para isso, para trazer o mundo à minha porta. Mas gostaria de abrir a porta também para boas notícias, para os bons cronistas e para que as crianças saiam para brincar sem medo.

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segunda-feira, 10 de março de 2008

Fantasia sobre um velho tema

O poema que se segue foi escrito pelo poeta português José Régio, ou José Maria dos Reis Pereira, como constou em sua certidão de batismo em Vila do Conde. Régio nasceu em 1901, no despertar de um novo século, e morreu em 22 de dezembro de 1969, seis meses depois de a Apolo 11 pousar na Lua.

A luz de sua poesia brilhou entre os grandes. Este é certamente um dos maiores textos jamais escritos em nossa língua. Um dos poucos que me bate a inveja: "porque não sou capaz de escrever assim?"


Dal Marcondes


Fantasia sobre um velho tema


Mora-me um poeta
Que tento esconder,
A ver
Se poderei ser
Como toda a gente.

Abri os meus alçapões,
E no último desvão
O fechei a pão e água,
Com grilhões,
E uma corrente...
(... a ver se poderei ser
Como toda a gente).

Depois, saí para a rua,
Todo aprumado,
Escovado,
Dado a ferro,
Satisfeito:
Porque em verdade, julgava
Que a multidão que girava
Pensava
De mim
Assim:

- "Ali vai um homem
Tão decentemente
Que, naturalmente,
Nada deve ter
Que nos esconder..."

Delirantemente,
De mim para mim,
Eu pensava assim:

- " Ser como essa gente!
Ser bem menos gente!
Ser mais toda-a-gente
Que toda essa gente!"

Sim,
Raivosamente,
Eu pensava assim.

... Tanto mais raivosamente
Quanto, dos longes de mim,
Do fim
Do derradeiro alçapão,
O Poeta emparedado,
Esfaimado,
Encadeado,
Cantava a sua prisão:

- " Se aqui me fecharam,
Foi porque não posso
Debulhar o osso
Que me arremessaram...

Foi porque os desperto,
De noite e de dia,
Com a chama fria
Do meu gládio aberto...

Foi porque a pobreza
Que fiz meu tesoiro
Tem muito mais oiro
Que a sua riqueza...

Foi porque horas mortas,
Indo no caminho,
Lhes bati às portas,
Mas segui sozinho..."

Eu pensava:

- " Sim, realmente,
Se te fechei, foi a ver
Se poderei ser
Como toda a gente..."

E baixinho,
Recolhido sobre mim
Como um bichinho-de-conta,
Eu cantava-lhe também,
Recolhido sobre mim,
Cantigas de adormentar:
Cousas de pai, ou de mãe,
Que cantam para embalar...

Assim:

- "Durma um soninho comprido
No seu bercinho deitado,
Que o papão foi enxotado,
E eu não deixo o meu querido...

Durma um soninho alongado,
No seu bercinho estendido,
Que eu não tiro do sentido
Velar o meu adorado..."

E assim, com tudo isto ao peito,
- Um doido e seu alçapão -
Eu seguia satisfeito:
Porque em verdade, julgava
Que a multidão que girava
Pensava
De mim
Assim:

- "Ali vai um homem
Tão decentemente
Que, naturalmente,
Nada deve ter
Que nos esconder..."

Como era que, de repente,
Nos olhos de quem passava
(Um qualquer)
Imaginava
Ver debruçar-se a acusar-me
Um colosso...,
Um poeta inofensivo
Com ferros nos tornozelos,
Nos pulsos,
E no pescoço?

Ai, campainhas de alarme
Sob dedos de outro mundo...!

E nem sei como
Transtornado até ao fundo
Dos meus alçapões recônditos,
Melodramaticamente,
Eu avançava
De braços todos abertos
Para o qualquer que passava.

Então,
Diante de mim, agora,
Qualquer, e não sem razão,
(Qualquer grosseirão)
Parava, ria,
Dizia
Que eu era doido varrido...

E, corrido,
Eu desatava a correr.

A multidão
Detinha-se para ver
Este senhor bem vestido,
Com bom ar e belos modos,
A fugir, como um perdido,
Ante o pasmo dos mais todos!

Sarcasta,
Bem lá do fundo
Do alçapão derradeiro,
O meu Cativo cantava
O timbre da sua casta:

- "Sou como um grito de alarme
Sobre as tuas sonolências.
Preencho as tuas ausências
Com a presença de Deus...

O som dos teus escarcéus,
Redu-lo a silêncio e a espanto
O murmúrio do meu canto
Nos teus ouvidos impuros...

Quero-te! e não são teus muros
Que hão-de impedir que te enlace,
E que te queime a boca e a face
Com meu ósculo de fogo...

Que trapaças de que jogo
Inventarás por vencer-me,
Se te rojas como um verme
Sem as asas que te hei sido?

E é de tal modo perdido
O afã de me combater,
Que é teu supremo vencer
Não vencer - mas ser vencido..."

... Cantava.
Mas eu, aos poucos,
Subjugava
Meus nervos loucos:
Retomava,
Da minha lista de cor,
Qualquer pomposa atitude...
Por exemplo: a de senhor
Fundador,
Ou benfeitor,
De associações de virtude.

E seguia
Com decência e autoridade,
Enquanto com desespero,
Com crueldade,
Com ódio,
Com soluços de paixão,
Gritava lá para dentro
Do derradeiro alçapão:

- "Não!...,
Não penses
Que te pode ouvir alguém!
Ouço-te eu; e mais ninguém!
Mas eu não te soltarei,
Nem deixarei
Que parem à tua porta.
Hei-de ter-te emparedado,
Carregado
De correntes;
E, por uma noite morta,
Hei-de entrar, como um ladrão,
E hei-de te cravar os dentes
No lugar do coração;
E hei-de te arrancar a língua;
E hei-de te queimar os olhos;
E hás-de ficar cego e mudo;
E assim,
À míngua
De tudo,
Te hei-de deixar
A agonizar por três dias...
Então,
Hei-de compor elegias
À tua morte:
Elegias académicas,
Sonoras,
Metafóricas,
Retóricas,
Feitas com todo o recorte,
Com toda a morfologia,
Com toda a fonologia,
Com toda a sabedoria
De versos caindo iguais,
Como um relógio a dar ais
À hora do meio-dia!
Depois, hei-de conservar
O teu coração escuro
Triturado
Por meus dentes,
Hei-de o conservar, pintado,
Retocado,
Envernizado,
Num frasco de cristal puro...

Para o mostrar às visitas,
Aos amigos e aos parentes."

Assim falando
Para dentro
Do subterrâneo nefando,
Ia andando
Com aspecto satisfeito,
E direito,
Bem seguro,
Sobretudo, consciente
De estar mesmo a ser, agora,
A parte de fora
(A cal do muro)
De toda a gente...

Assim entro em várias casas,
Através de várias ruas,
Parando ante várias montras,
Cumprimentando
Para um lado, para outro...

Até ficar
Numa qualquer sala
Onde estão sentados
Homens e mulheres
Com um ar de embalsamados.

Criados
Vêm e vão
Com bandejas
Sobre a mão.

Paira, como nas igrejas,
Um fumo de hipocrisia...

Enquanto
A um canto,
Com funda neurastenia,
Um piano faz ão-ão,
Faz ão-ão a toda a gente,
Como um pobre cão doente.

Logo,
Então,
Qualquer menina Marguerite
Me implora que lhes recite
A última produção.

Recuso-me,
Ela insiste,
Vou para o meio da sala,
Tudo se cala,
Sinto-me triste,
Falta-me a fala,
Falta-me a respiração,
E a suar de angústia, rouco,
Debuxando no ar gestos de louco,
Arranco, num grande esforço,
Estas palavras ao Outro...

Palavras
De todo o meu coração:

- "No silêncio total, contemplo-te. Morreu
A já póstuma luz dos astros mortos, no céu cavo.
Chegou a nossa hora! A realidade és tu e eu.
Contemplo-te, senhor!, eu, teu indigno escravo...

Os teus olhos serenos e cruéis
Despojam-me de toda a ornamentação:
E eu tremo, nu, sobre os meus tristes, preciosos
ouropéis,
Nu - e coberto de confusão.

Lembro as minhas mãos vis, meus olhos lassos,
E a minha carne murcha, e o meu suor,
E os meus pés deformados, e as feridas dos meus
braços...
Tem dó de mim!, belo senhor.

Continuas a olhar-me. Imperturbável,
O teu olhar transpõe minha nudez.
E, por mais que a teus pés eu me recolha,
miserável,
A alma dói-me!, porque tu ma vês.

Como és assim cruel, sendo tão belo?
Tira de mim o teu olhar, que me tortura,
Macio e frio como o fio dum cutelo...
Poupa-me à tua formosura!

Ah, que martírio
Ter-te sempre tranquilo, grande, belo,
Posto em frente de mim, que sou delírio,
Ranger de dentes pouco sãos, riso amarelo...!

Vai-te da minha vista, meu amado!
Chama por mim o chão de que sou digno.
Deixa-me resignar-me! Estou cansado.
Só por pudor de ti me não resigno...

Deixa-me ir ver, lá em baixo, os saltimbancos,
Gozar o vil ballet que sobe à cena.
Deixa-me ir ocupar o meu lugar nos bancos,
Exibir o meu número na arena!

Deixa-me ser vulgar!
Pois se não posso ser o que tu és,
Por que assim me agarrar, e rastejar,
Como um grilhão, aos teus pés?

Triste impotente, em vão, dentro de mim, grito
estes gritos:
Olho-te..., e quedo nu e mudo,
Porque os teus olhos nítidos e fitos
Se me antecipam a tudo.

E eu sei que não te irás, nem eu irei.
Pesa sobre nós dois a mesma condição:
Que eu nasci servo dos teus pés de rei;
Tu, pobre rei!, servo da minha servidão."

Calo-me, aflito.
Em roda,
Com um ar comprometido,
Dizem que sim, que é bonito.
Tangendo as pontas dos dedos,
Dão-me palmas
Com um meneio entendido
Das frontes estupefactas...
E a menina Marguerite,
Levantando as omoplatas,
Baixa, lânguida,
As pálpebras timoratas
Sobre a fímbria do vestido.

Ah!, eu sei!
Sei que ninguém compreeendeu,
Nem podia compreender,
O meu combate de amor:
Este diálogo entre mim e eu.

E arrumado para um canto,
Como o piano,
Gozo onanisticamente
A glória de ser vencido,
Gritando ao meu tal Demente
Lá no seu fundo escondido:

- "Venceste, porque és maior!
Porque tinhas de vencer!
Porque eu sou fraco,
Pois que te não posso ter
Calado no teu buraco!
Eu, afinal,
Sou uma triste mistura
De ousadia e cobardia.
Sou tu e eu...,
Sou banal!
Nem sou pele nem carne viva,
Não sei subjugar nenhum,
Padeço de alternativa,
Nunca me atinjo só um!"

...Enquanto ao lado, de esguelha,
Falando para um sujeito
Debruçado, como um cuco,
Sobre o seu ombro perfeito,
A dona de um alto peito
E duma boca vermelha
Diz:

- "Não parece antipático!
Não..., só maluco.
Talvez um pouco lunático..."

E eu, sentindo-me ridículo
Com o meu ar sorumbático,
Vou fechar-me num cubículo
Onde não haja ninguém,
E aonde a voz do Arcanjo preso
Lá dos fundos, alta, vem:

- "Por que me renegas, se eu é que sou Um,
E em te desdobrando, tu não és nenhum?

Por que me recusas, se não há batalha
Que, sem mim ganhada, possas crer que valha?

Por que deles todos me escondes aqui,
Se eu é que os sou todos, e te sou a ti?

Por que só exibes, sobre o teu portal,
Vis máscaras minhas...?"

Etc. e tal.

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domingo, 9 de março de 2008

Os incríveis anos 70

por Dal Marcondes


Para mim a década de 70 começou em 1968.Tudo o que viria depois, até o início dos anos 80, tinha a ver com o que as pessoas estavam fazendo e discutindo, pelo que ela lutavam, pelo imenso desenvolvimento científico do final dos anos 60 e pelo avanço da TV e dos meios de comunicação de massa. Os Beatles chegaram ao fim e foi como se uma flor ficasse madura para lançar sementes. Deu no Jornal da Tarde, o diário de uma geração. Em suas páginas aconteceram a Primavera de Praga, ouvimos os discursos inflamados de Daniel Cohn-Bendit (Dani o Vermelho), e assistimos as atrocidades do Vietnã. São Paulo se desconstruía como capital de província e vestia seu manto cosmopolita. O Brasil pensava grande e realizava pequeno.

1968 o ano do primeiro beijo
Quando eu desci as escadas na rua pacata do Brooklin, lá embaixo estava a Rachel, uma linda menina de 14 anos. Em silêncio, com muita timidez, as mãos se tocaram. Ao longe os ruídos dos aviões de Congonhas e, da sala, o som da vitrola tocando ie-ie-ie. Nos olhos o brilho da emoção de ter chegado a hora. Um momento ansiado por anos, a espera de cada um e a realização. Um beijo. Não qualquer beijo, mas o primeiro, que me lançou no mundo dos homens, a primeira manifestação sexuada em relação a uma mulher. O máximo. O início de uma década que só terminaria 10 anos depois, quando entrei na faculdade.
Depois daquele beijo tudo ficou diferente. A ternura virou tesão. As festas coloridas ganharam os sinais de territórios de caça. Dançar, um ritual de acasalamento e, viver, uma grande emoção. Começavam ali os Incríveis Anos Setenta, que me levaram a conhecer terras e mulheres, que me mostraram caminhos e descaminhos, que trouxeram e levaram amigos. O rock como hino, a liberdade como bandeira e as drogas como caminho. Ao som de Stairway to Heaven se construiu uma geração de caminhantes.



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